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terça-feira, 25 de outubro de 2016

INFERNO ASTRAL

fonte da imagem: http://estilo.uol.com.br/horoscopo/noticias/redacao/2014/07/17/com-ma-fama-inferno-astral-e-na-verdade-uma-das-fases-mais-ricas-do-ano.htm

Essa história de inferno astral é para quem acredita. E mais ainda para quem não acredita. Comigo acontece todo outubro. Quando menos penso, lá vem ele ardendo. Não adianta querer fugir. Fingir, então, não faz efeito. Inferno astral é pessoal e intransferível. Fosse um tropeção, ou merda de pássaro na cabeça, ou briga com o chefe, faria melhor sentido. Mas inferno astral é subjetividade. Todos os demônios de mãos dadas.

-Demônios são esses clientes que você atende-diz uma amiga-Deus me livre!
Tento explicar-lhe uma questão de categoria, que “o inferno são os outros”, porém, o inferno astral é a gente mesmo.

-Mas será que esses clientes não contribuem pra ferrar mais?-ela insiste.

A força do inferno astral se traduz no pensamento. Hora de rever valores, medos, deslizes. Hora de se sentir assim mesmo: um bosta. E não dá para ser mais ou menos bosta. A gente o é por inteiro. Essa chegada sorrateira e disfarçada do inferno astral tem função educativa. Novo ano natalício, velhas questões, velhas feridas. Às vezes incomoda tanto que o mundo próprio parece sem conserto.

Depois, de forma imperceptível, o inferno vai sumindo, sumindo, parece dobrar a esquina sem aviso. Minha amiga pondera:

-O problema é que da mesma esquina sempre surge um cliente, um inferno de um cliente, um desgraçado.

domingo, 16 de outubro de 2016

VELÓRIO DA DONA NEYDE



Entro pela portaria errada. Quando vejo, já estou caminhando na imensidão do Cemitério da Vila Alpina. Tudo deserto. Pergunto a um senhor qual a direção correta para o velório. Ele sai do seu veículo para explicar. Oferece-me uma carona. Chama-se José e vem visitar a mulher, falecida há um ano. Mais de quarenta anos de união. Diz que o remédio é aceitar nossa ligeira passagem por este mundo. Por distração, acaba me levando para o lado por onde entrei. Pede desculpas, faz retorno na avenida e me desembarca em frente ao velório.

São doze salas, todas ocupadas no começo da tarde, muita gente dentro e fora. Parece um lugar ponto de encontro. Avisto minha amiga Beth na sala X, ela sorri para mim, agradece a minha presença e nos abraçamos. A diferença entre velórios que podemos frequentar são muitas. Quando não se conhece a falecida, nossa dose de carinho é toda da pessoa vítima da perda. Dona Neyde era mãe de Beth. No ambiente de pouca gente, uma atmosfera serena parece compor o temperamento familiar. E assim permanece até a oração e saída do féretro para outro cemitério.

Toda perda, direta ou indireta, parece compor um marco na nossa existência. Eu atravessei a cidade para estar com minha amiga, para explorar um bairro desconhecido. E, aproveitando o dia de sol, caminhei como nos velhos tempos. Porém, dentro do cemitério, sem saber aonde aquelas campas iriam parar, observando as casas vizinhas mais mortas, senti-me um fantasma. Dirigir-me ao senhor José foi quebrar um silêncio. Meu, dele, de duas circunstâncias. Um ano é pouco tempo e os calados também precisam falar.

Agora volto de carona até o Tatuapé com Elaine e Mirtes, irmãs do meu amigo Airton, falecido há quase um ano. Um ano é pouco.

sábado, 1 de outubro de 2016

COMIDA CALA A BOCA

fonte da foto: http://www.mundoboaforma.com.br/confira-o-que-corresponde-a-2-mil-calorias-em-restaurantes-fast-food/

A composição "política" de um fast food combo visa a dominação. Pense comigo: se o sanduíche não é suficiente, a batata frita e o refrigerante completam a função de empanturrar. E em vez de alimentado, você fica é cheio. Satisfeito, terá sido manipulado; manipulado, terá servido aos interesses de terceiros. Assim começa a dominação.

Eu, que tenho vivido longe de comida rápida, ontem resolvo variar. Fico longos minutos decidindo. Quando chego no caixa, o rapazinho pergunta: mais um real disso? Daquilo? Mais 2 reais para ser batata da grande? Não, não e não. Que diabos? A intenção é fazer eu gastar além do "combonado"? O bom da história: ele já entrega um copo para que me sirva livremente de qualquer refrigerante da máquina no canto do balcão de espera. Confiança no cliente. Também pergunta meu nome. Feito o prato, serei chamado pelo meu batismo, nada de números. Aproximação com o cliente.

A variedade de refrigerantes da máquina tem a mesma qualidade: aguados. E olhe que eu não pus gelo. Quando o prato chega, outro rapazinho pronuncia meu nome, faz a entrega e agradece sem me olhar na cara. Então abandono aquele burburinho atrás de uma mesa vazia. Hora da verdade: a batata é boa, não ótima; o sanduíche, saboroso, recheio quente, bem preparado, embora ao vivo pareça menor do que o da foto. Resultado: levanto satisfeito daquela mesa do Center Norte, mas objetivamente infeliz. 

Infeliz pelo contexto. Por ser recebido por jovens quase robozinhos, treinados num roteiro eficiente e sem calor. Atendimento com armadilhas mercantilistas para nos fazer sentir melhor, se possível gastando mais do que o pretendido. O consolo é saber que em breve toda essa moçada estará longe desse trabalho de fábrica. Dos dois avarentos saquinhos de guardanapo vindos no lanche, cada qual com dois guardanapos dentro, eu uso somente um. O outro, de forma paradoxal, guardo na mochila. Como se compensasse para mim mesmo os custos da tal rede de alimentos. Sanduíche, batata frita, refrigerante à vontade. Santíssima trindade. Achei tudo muito caro.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016

PARTE UMA DAMA


Minha geladeira não está nada bem. 
Acordei hoje com ela tendo inúmeras paradas respiratórias. Liga e desliga ao mesmo tempo. Não consegue ficar ligada. Tenta de novo. Não tem forças. Ofegante e heroica vai tentando, mas parece vencida pelo cansaço. Eu fico na expectativa da hora em que ela parará de vez. No entanto, durante meu banho e meu café, ela se mantém obstinada. É um apego à vida. Não posso ajudá-la porque não sou médico de geladeira. E então saio abatido de casa para o trabalho.

Aos trinta e seis anos ela nunca teve nada. A única coisa que precisei fazer foi arrancar a sua placa de baixo. Tremia muito, fazia barulho forte mesmo eu calçando seus quatro pés. Não sei bem como se valora os anos de uma geladeira. Dizem quinze para os gatos, treze para os cães. Comento com o meu amigo Celso que Marilyn Monroe morreu aos trinta e seis anos. Ele rebate dizendo que ela era A geladeira. E se duvidar também fogão e airbag, mas esses dois sou eu quem diz. Minha sobrinha completa afirmando: "ela era a cozinha inteira". 

Retorno do trabalho esperando o pior. E mais triste porque será inevitável substituí-la, pois não se vive sem geladeira. Entro em casa pesaroso, abro a sua porta para avistar o gelo desmilinguido. Nada disso. Estão nas formas e conservados no frio. E então ouço a respiração dela: talvez mais fraca, menos compassada, mas viva. Minha geladeira resistente e gelada por dentro. 

Daqui para frente é viver um dia de cada vez.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

VOLTA, JOVINO

fonte da imagem: http://www.panoramio.com/photo/86897967

A convocação anual para o curso de Brigada de Incêndio de cara me provoca antipatia.

Já no dia marcado, acordo mais cedo e sigo outro roteiro de transporte público. A caminho não tenho tempo de remoer mágoas. Brigada não foi minha escolha. E como não trabalho em local ou atividade de risco, o ano corre sem que eu me lembre ser brigadista. Cumprida a primeira etapa do trajeto, chego na Ponte Pequena, onde um micro-ônibus, à espera dos funcionários, nos fará ida e volta ao sítio.

Embarco, solto um "bom dia" a todos, alguns dos vinte e poucos passageiros respondem, vejo uma mãozinha estendida acima do encosto de um banco a me cumprimentar. Trata-se da Claudinha, funcionária do RH Norte da empresa, acompanhada e sorridente. Durante uma hora de percurso terei tempo de dormir ou de pensar em nada, esperando que o dia seja curto.

O roteiro é cumprido: chegada ao sítio, café, aula teórica, pausa de 10 minutos, aula teórica, almoço. À tarde, com roupas, botas e capacetes adequados, aula prática: manuseio de mangueira e extintores na simulação de incêndio, visita à casa da fumaça. E perto das quatro horas da tarde, com os certificados em mãos, já estamos no micro-ônibus de volta. 

É nessa hora que uma sensação de bem-estar toma conta de mim. A mesma que ocorreu no ano passado, quando fiquei mais atento a sinais. Não sei como explicá-la. Ela aparece como se toda a dificuldade imaginada tivesse uma prova em contrário: encontrar pessoas cuja maioria não conheço, quebrar o gelo no contato com o grupo, ouvir os mesmos ensinamentos do ano anterior. Mas sempre tem uma novidade, surge outra dúvida, a forma do professor de agora se expressar, o jeito dele conduzir a parte prática. Além disso, o contato quase imperceptível com a atmosfera do sítio: árvores, pássaros e formigas espalhados, algumas ladeiras e espaços verdes abertos. Um silêncio. Depois, no movimento da parte prática do curso, subindo e descendo escadas no escuro, apontando, em grupo, a mangueira para o fogo, um atestado de que o corpo é capaz de muita coisa. Já refestelado na poltrona do micro, o momento maior de descontração quando um colega do grupo, sentado atrás de mim, diz que até ele está interessado num tal de Jovino. Porque a frase "Volta, Jovino", ao longo de um muro extenso, aparece pichada várias vezes. E mesmo depois de outras curvas, outros muros, a frase continua aparecendo. Se foi amor ou obsessão, não sei.

Sei que ao chegarmos na Ponte Pequena, algumas pessoas se despedem, de mim e entre si, espalham-se para seus destinos. E eu, livre, ganho a imensidão da avenida Tiradentes.

domingo, 18 de setembro de 2016

DOMINGOS MONTAGNER E DAQUILO QUE NOS OCUPAMOS

fonte da imagem: http://mdemulher.abril.com.br/famosos-e-tv/claudia/famosos-lamentam-a-morte-de-domingos-montagner

A morte ronda a vida. E nos surpreende quando sai da sua invisibilidade. Embora vida e morte pareçam as maiores forças antagônicas, ambas trabalham em conjunto. Ali estarão, o tempo inteiro, interligadas e cúmplices. 

Ontem, manhã de sábado, ocupei-me pela TV do velório do ator Domingos Montagner. Eu precisava sair para fazer compra, mas enredei-me no ritual: absorver e processar a notícia, certificar-me do desfecho. É um processo parecido com o que enfrento na morte de parentes e pessoas próximas. Mesmo não sendo telespectador de novelas, cheguei a acompanhar o trabalho do ator em "Sete Vidas". Na época fui cooptado pelo texto, também pelas interpretações e direção de elenco. A trama, de âmbito familiar, presenteou-me com personagens como velhos conhecidos. E foi essa morte tão abrupta, de alguém cuja simplicidade ia sendo exaltada nos depoimentos, que causou em mim a necessidade de uma reflexão.

Em geral a morte traz à tona o legado da pessoa: quem foi, o que fez, o que deixou. Se o conjunto da obra é bom, belas histórias ecoarão da boca de terceiros. Medonhamente, porém, existem pessoas que se ocupam em criar histórias a respeito de si mesmo. Falo dos mentirosos, e corruptos, e políticos. Aqui no Brasil não faltam. Vangloriam-se com os próprios feitos, exibem-se sem culpa, desqualificam os trabalhos honestos. Fincam o pé na mentira, a despeito de evidências, para transformá-la em verdade pela repetição.

Sobre o falecido Domingos Montagner, cujas qualidades ninguém recebeu propina para propagá-las, cuja comoção da morte expressou-se com discrição, tudo soa verdadeiro. Como a dor da perda de um conhecido, um próximo na tela da sala de estar, sem arroubos, sem espalhafato. Que bom sempre pudéssemos avaliar pessoas, assim como a ele, somente olhando nos olhos. 

A morte ressalta a importância da continuidade da vida. Ontem pela manhã ocupei-me de um velório. Depois saí de casa para comprar apenas o necessário.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

HISTÓRIA DE ESTAGIÁRIOS E APRENDIZES

fonte da foto: http://bibocaambiental.blogspot.com.br/2015/06/libelulas-belas-mas-assassinas-brutais.html

Eu não imaginei um dia sentir saudade da Melissa. Ou daquele nosso ocasional encontro na Vinte e Quatro de Maio, fundos da Galeria do Rock, quando há pouco ela havia saído da empresa. Talvez porque ainda não se formara a barreira de tempo entre nós. Melissa exalava doçura. Pele alva, cabelos escuros, olhos grandes e meigos. Se existe alguém que transmita expressão de bondade, esse alguém era ela. Após ouvir com atenção uma última frase de conversa, ela mantinha o sorriso e olhar fixo na gente. Jovem, suave, fala mansa e assertiva, pessoa nascida para nunca ofender. Seus últimos dias no trabalho, contudo, foram de faltas seguidas. Melissa desconsiderou o emprego e o curso no Senai, ambos atrelados. Mais tarde afirmou que não se interessava pelo diploma. Estava decidida a seguir outro caminho.

Na época beirou-me certa infelicidade. Largar algo próximo do final não me parecia boa ideia. Pelo tempo que ela investira no projeto, pelo título, mesmo sendo apenas papel, por uma trajetória que não ficaria oficialmente registrada. Outra vez o olhar de adulto interferindo num espírito livre. Pois a meu ver toda a história carregava um componente de desilusão. Desilusão adquirida no próprio ambiente de trabalho, insalubre demais para os puros. Por isso jamais me coloquei a ela com palavras.

As histórias de estagiários e aprendizes dentro da empresa são muitas. Em geral entram crus, aprendem com facilidade as tarefas, revelam aptidões, partem às vezes sendo lembrados pelas traquinagens malandras. De muitos, lamentamos o talento compulsoriamente desfeito pelo fim do contrato. De outros, a constatação de que um dia, como pássaros, estiveram próximos da gente.

Melissa, em meio à multidão daquele começo de noite, parecia feliz em me ver. Contou-me sobre as novidades, talvez um emprego à vista, talvez outra coisa, qualquer possibilidade para a pessoa agora sem vínculos. E embora sem pressa ela mantivesse o sorriso de sempre, chegou a hora da inevitável despedida. Melissa, feito uma libélula, partiu por entre os transeuntes da Vinte e Quatro de Maio, deixando em mim a eterna sensação de que fui eu que a abandonei.

sábado, 27 de agosto de 2016

JEFF BUCKLEY, A HISTÓRIA QUE ME EMOCIONOU

fonte da foto:http://www.npr.org/2016/01/13/462813257/songs-we-love-jeff-buckley-just-like-a-woman


Foi buscando a trilha sonora de "House", a meu ver uma série ainda na moda, um dos melhores textos e personagens, que me deparei com a música Hallelujah, de Leonard Cohen, na voz do lendário Jeff Buckley.

Até então eu não sabia quem era Jeff. E menos ainda que estava morto há anos. Tenho aptidão para descobrir falecidos, como se sentisse o cheiro de flores de velório suspenso no tempo. E quase sempre encontro histórias marcantes. Mas é como chegar por último numa corrida. É descortinar um tempo que já não existe. Muitas vezes também é refazer uma época em que eu estive lá; no entanto, não soube, não ouvi, não desfrutei.

Tudo por causa de uma música cujas variadas versões têm sido usadas em filmes, séries, formaturas etc. Quem canta essa versão de "House"? Jeff Buckley. Quem é? Foi. Morreu em 1997, aos trinta anos, afogado no rio Wolf, afluente do rio Mississipi. Filho de Tim Buckley, músico dos anos 60, que abandonou a mãe de Jeff ainda grávida dele. Encontrou o pai somente uma vez, quando tinha oito anos, alguns meses antes de Tim morrer por overdose de heroína. De tudo o que se vê ou lê na internet sobre Jeff, as informações parecem réplicas uma da outra. Porém, a maioria ressalta o seu talento vocal, herança direta do pai, cujas comparações ele próprio temeu, querendo, a princípio, ser somente instrumentista.

A interpretação ao mesmo tempo intensa e intimista de Jeff Buckley de Hallelujah deve ter causado uma busca em muitas pessoas assim como causou a mim. Afinal, quem é, ou foi, a pessoa que me conduz às entranhas de uma contemplação única? Como era fisicamente esse cantor? Como pensava, como falava? Quem foi esse garoto que, abandonado pelo pai, segue passos também musicais e consegue ser único a partir desse pai?

Como ele próprio parece ter declarado, que as pessoas que o viam em seus shows não o conheciam de verdade, a verdade de um artista aparece a todo tempo: fragmentada, como em flashes de fogos ou estrelas, e é impossível ficar indiferente a ela. Não sendo a única faceta de um ser mortal, sujeito a desaparecer nas águas de um rio, ainda assim seu legado continua a ecoar. Ele acolheu e continuará acolhendo admiradores. Jeff em Hallelujah é só a ponta de um iceberg com relação ao que o jovem produziu com sua voz singular.

Não sei o que eu fazia em 1997, com o que andava distraído, mas se soubesse da existência de Jeff Buckley, talvez padecesse da mesma pena de hoje: a de que ele partiu muito cedo.

domingo, 14 de agosto de 2016

SONHOS NÃO CONFIÁVEIS

fonte da foto: http://mapio.net/o/93711/

"Amanheci na orgia. Comi quem eu pude, nem vi quem me comia."
Um bêbado solta essa ao passar pelo ponto de ônibus hoje cedo. Todo mundo ri. Um grupo de jovens vindo da noitada faz uma algazarra:
"Então você gostou, hein, tio?"
O homem ri junto, responde alguma coisa e segue bambo.

Quando o ônibus sai, a claridade nublada já despontou. Fazia tempo que eu não amanhecia na rua. Tinha esquecido como é bonito o amanhecer. Mesmo com a percepção alterada de quem não dormiu, vejo a aurora ampliar a avenida Cruzeiro do Sul, quase deserta de carros e gente. Entre um cochilo e outro, a chegada em casa é rápida. Próximo das sete horas, resta-me comer e dormir.

Então vêm os sonhos. Eu preciso me livrar das camisetas que abarrotam meu armário. Preciso arrancar este botão de roupa cravado na minha gengiva, que enxergo pelo espelho. Mas a confusão impera, como em todos os sonhos povoados de resíduos da vida. Amontoado de sentimentos de uma vigília de mais de vinte e quatro horas. Havia eu me excedido num desejo tolo de prolongar o dia? Ou as vitórias?

Por fim, na divisa entre o sono e o despertar, acordo de vez neste início de tarde de sábado. Nem imagino o que o bêbado fez ou fará nas próximas horas. Mas logo lembro que um cesto cheio de roupas sujas espera por mim.

terça-feira, 9 de agosto de 2016

OLIMPÍADAS 2016

fonte da foto: http://www.naval.com.br/blog/2016/08/08/rafaela-silva-judoca-e-militar-da-mb-conquista-medalha-de-ouro-nas-olimpiadas-rio-2016/

Olhar as Olimpíadas 2016 é como sair da toca. Eu diria mais: é como ser uma coruja passeando à luz do dia. Nada de reflexões soturnas. Porque o esporte sozinho motiva a mente de praticantes e espectadores. E, caramba, as Olimpíadas da Era Moderna acontece no Brasil, coisa que nunca vimos e que a maioria não mais verá.

Muitas vezes desconfiei que os valores exaltados no esporte, e a catarse coletiva, viessem de algo imposto, uma emoção barata que não era a minha. Hoje reconsidero. Pois muitos desses valores não diferem dos praticados no anonimato. Aqueles relacionados com boa índole, superação, solidariedade, trabalho em equipe. Todo cidadão de bem tem algo dos bons esportistas. Daí nossa identificação com eles ser legítima.

Olimpíadas é a melhor oportunidade de nos livrarmos da hegemonia opressiva do futebol masculino. Ela traz a novidade, o não corriqueiro, promove descobertas e novas paixões. Se nosso país não é tão expressivo numa determinada categoria esportiva, parece-me que tanto melhor poder apreciar quem faz bonito.

Neste 2016, com o fiasco, até agora, do nosso futebol masculino, tem valido assistir ao feminino com nossas atletas dando o exemplo de como jogar em equipe. Sem falar no handebol, voleibol, este masculino e feminino. Hoje, ainda, a nossa primeira e emblemática medalha de ouro com a judoca Rafaela Silva, que ficará na história.

Olimpíadas, com ginástica artística, tênis de mesa, tiro ao alvo, esgrima, vela, ciclismo e outras tantas modalidades, é oportunidade ensolarada de sair do "euzinho" módico, monocórdico, obscuro. Olimpíadas, sem complicações, é algo bom de se ver.

domingo, 17 de julho de 2016

FUTURO DO PRESENTE


Eu sentirei saudade quando você não for mais só minha.

Quando não estiver me contando coisas que os olhos não veem mas o coração sente. Sentirei saudade quando teus segredos não forem primeiramente meus. Quando naquele ocaso, começo da noite, você não aparecer, sentirei saudade. E nunca será oposto ou desgosto, saudade de inveja por você ser para outros. Pois sei que o presente que te traz é o presente que nos faz próximos no momento. Simples presente. Com som, aroma, palavras, sabor de um tempo. Quando não pudermos, pelo vento, estar sob o mesmo sereno, ainda assim um no outro pensaremos. A caminho na Paulista, ou a esmo, com nossos passos no mesmo esteio. 


Eu sentirei saudade, lua, quando você não for mais só minha. E de você também, Débora.




sábado, 16 de julho de 2016

INCERTEZA

fonte da imagem: http://www.filmologia.com.br/?page_id=4229

A minha vida resumiu-se a isto: medo de que batessem na porta, medo de que não batessem.

Ah, sei lá, vai que a felicidade viesse mesmo. Ou coisa pior. Mais difícil ainda é depender. O sol, com ou sem nuvens, vem todos os dias. E ainda assim a gente chora, porquanto o sofrimento é real. Ou frescura. Mas perder pessoas não dá. A droga do vício quando adoça a existência. Se não adoça, a vida corre do mesmo jeito. Quem precisa disto ou daquilo que a propaganda propaga? Preciso de saúde, de independência para carregar a própria sacola no varejão de quinta-feira. É, rua larga onde as pessoas não necessitam disputar espaço. No fim da manhã aquela claridade, de junho, que já rompeu o frio e vai esquentado as costas. Liberdade, liberdade. Que também é uma faca de um gume. A liberdade é cortante.

Podia ser que a porta abrisse, que eu não vivesse esse silêncio tão escancarado. Podia ser que entrassem fantasmas, ou somente um vento com aromas. É que o medo, o medo pelo o que viesse depois das batidas, seria o medo pelo nada além da porta. Alguém, ou alguma ideia, já andou permeando meus aposentos. E disseminou a espera. 

quarta-feira, 29 de junho de 2016

A FACE DA INOCÊNCIA

fonte da foto: http://www.contioutra.com/o-impossivel-carinho-num-transbordar-de-ternura/


Às vezes eu prefiro a ternura. É que tem sido fácil desconfiar de tudo: o mundo da maldade anda aqui e ali escancarado. 

Sexta-feira passada, início da noite, uma mulher com três crianças chegou no ponto de ônibus. Duas delas, menino e menina, eram bem pequenas. Estavam agasalhadas. A mulher as assentou no banco onde permaneceram comportadas e falantes. A terceira, garota de uns oito anos, ficava atenta ao lado das menores. Logo pensei comigo que essa, também sendo criança, talvez necessitasse de uma atenção maior. Há um encanto natural nas crianças menores e mais inocentes, assim como nos filhotes de animais. Diferente do encanto de uma criança mais madura, já com outra percepção do afeto ao seu redor. 

Essas ideias brotavam a partir do momento em que um homem sentado no banco elogiou as crianças e começou a trocar palavras com a mãe. Se eram filhos dela? Sim, os dois. A maior era vizinha. Vizinha ou sobrinha? Eu não entendi direito, mas qualquer que fosse o laço, reforçava uma condição secundária para a menina grande. Uma condição inerente a todos quando perdemos status para algo novo e mais viçoso. O homem revelou ser pai, quase chegou a tocar no garoto que, todo encapotado e durinho, os pés no ar, estava deslizando para fora do banco. A mãe cuidava de olhá-los e de observar se vinha o ônibus.

Uma desconfiança, até mesmo literária e não literal, de que o homem pudesse ser um molestador, não teve resposta até os instantes finais desta história. Ele, por um triz antes de chegar o ônibus, perguntou à mãe se podia fotografar as crianças. Ela assentiu. Eu também. Afinal, a mesma graça que ele estava achando nas crianças, eu estava; de outro jeito, a mesma percepção que daquele instante passageiro ao menos uma imagem pudesse ser guardada. Ele, então, da forma mais humilde, agachou-se em frente aos três, que fizeram pose, e depois mostrou-lhes a foto.

Com toda a clareza de que esse homem talvez não fosse aquilo que preferi acreditar, frente a uma mãe tranquila, quase desligada, optei pelo encanto final e pela certeza da segurança dos pequenos. A mãe anunciou o ônibus; as crianças, sem serem instruídas, disseram tchau ao homem, subiram felizes as escadas, o menorzinho no colo, uma confusão entre eles e a maleta. Depois, pela ordem, veio o ônibus do homem e em seguida o meu. Todos separados, em itinerários e destinos, segui calado com minha saudade.

terça-feira, 10 de maio de 2016

DOROTHY PARKER NO TEATRO PEQUENO ATO




Na medida em que o tempo passava, corríamos o risco, Eduardo e eu, de ser os únicos na plateia. O horário da sessão de quinta-feira já se aproximava e, com exceção das pessoas do teatro que circulavam no saguão, apenas um som ambiente permeava a espera. Na rua estreita e sem carros, o paredão de prédios fazia um isolamento acústico e de mundos. Nem parecia que estávamos tão perto da movimentada rua da Consolação.  

Confesso ficar triste com teatro vazio. Principalmente por estar em São Paulo, cidade com tanta opção cultural e tão enorme população. Fico pensando no trabalho que é idealizar um espetáculo -pesquisas, ensaios, produção, apoios, patrocínios etc.- para eventualmente amargar noites quase sem público. E, ai, meu Deus, se o espetáculo não fosse bom, não conseguiríamos fingir o contrário.

Afinal, descemos as escadas. Quase como num culto religioso, o clima que antecede o "ao vivo" é sempre único. Há expectativa para o insólito, creio que tanto da parte do espectador quanto da parte de quem atua. E lá estamos, de chofre, nos primórdios do século passado, vivendo historietas de flertes, não, de namoros, não, de amores e casamentos, sabe-se lá, uma mistura relacionada a afetos e à solidão social. Eis o universo de Dorothy Parker: transitar pelo humor, a princípio abobalhado, quase infantil, mas também sagaz e crítico, para revelar o individual das carências e fragilidades. Em especial no mundo feminino.

O grupo de oito atores, cinco mulheres e três homens, que se movem em cena é uma delícia. Com a graça de uma dança ragtime, inclusive com números de sapateado, a adaptação nos instala com conforto na época. Como se estivéssemos assistindo às tramas pela janela de casa. O belo figurino, em conjunto com a iluminação, são ingredientes que por si dispensam um mobiliário de época. Porque importa a maneira como as histórias, entrelaçadas entre riqueza, proletariado e boemia, são contadas. Depois de muito rir com os atores, o desfecho nos vai encaminhando para um estado de abandono. O jogo de cena, muito bem aproveitado pela quantidade de mulheres a interpretarem a mesma personagem, mostra a ambivalência da condição humana, suas semelhanças e dessemelhanças. No entanto, a figura dos homens, às vezes tão ou mais frágil, reforça o quadro de valores e padrões de um período histórico e econômico difícil. A vida em guetos, a clandestinidade, outros subterrâneos como esta sala que, ao final da apresentação, tem a luz acesa para aplaudirmos com alegria o elenco.    

Um privilégio terem decidido pelo "sim" em apresentar a peça na quinta-feira deserta. Vibramos como se levássemos a energia de uma plateia lotada. E de sobra ainda trocamos cumprimentos e boas palavras com direção e parte do elenco. Sorte a minha ter um amigo de longa data que se encarrega do teatro. Noite inesquecível no Pequeno Ato.   

domingo, 8 de maio de 2016

COLETÂNEA DE MÃES II

fonte da imagem: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=40781

Eu escrevo, se me perguntassem, primeiramente para as mulheres. Não pela intuição ou desconfiança. Nem pela capacidade de instigar chuva. Eu escrevo para as mulheres pelo acolhimento. A natureza as fez assim. Acolher o filho, o pai, o irmão, o amante. Acolher também a própria mãe, as amigas, as filhas das amigas. Nas mulheres o acolhimento pontua, provoca, incentiva. Nas mulheres o acolhimento não julga; agasalha, compreende, aconselha. Acolhimento nas mulheres é colo, é ventre, é grão; e é maciez, berço e beijo. O homem, no acolher da mulher, volta a ser homem, filho, bebê. Mulheres acolhedoras acolhem hábitos, vícios, pensamentos.


Mulheres acolhedoras, nem todas. E há homens acolhedores da maior suavidade. Mas é diferente.

texto de 2003, revisado em 07/05/2016

COLETÂNEA DE MÃES

fonte da imagem: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=40781

Eu precisei de uma mãe que me amamentasse, que me oferecesse boa educação e me visse crescer. Precisei de uma mãe que me desse cascudo, que me dissesse “não” e me ensinasse a escrever. Eu precisei de uma mãe que me aturasse o temperamento, que me entendesse nos medos, que fosse a primeira a ouvir sobre meu primeiro emprego. Precisei de uma mãe que me esperasse em casa, que não me esperasse nem em casa, que eu tivesse que esperar. Eu precisei de uma mãe que me achasse inteligente, bonito, educado. Precisei de uma mãe que me apontasse os erros, a pressa, o equívoco. Eu precisei de uma mãe que também não me facilitasse a vida, que não chorasse por mim, que me ignorasse. Precisei de uma mãe que me enxergasse como os outros me enxergam, que me soltasse no mundo, mas que, num aspecto sutil e secreto de mãe, dependesse de mim. Eu precisei de uma mãe que gostasse do que escrevo, que soubesse por que escrevo, que fosse a primeira a ler entrelinhas.

Por minha mãe, e por todas as outras que já tive, é que escrevo. Porque um homem é somente só sem aquelas que, sendo únicas, sempre são tudo, e nos acolhem no ventre macio, a troco de tudo, a troco de nada. 

texto de 2003 revisado em 07/05/2016

domingo, 1 de maio de 2016

DESCONFIANÇA, FALTA DE CONFIANÇA

fonte da imagem: http://www.rosangelaterapeuta.com.br/2012/07/luz-e-sombra/

Desconfiança pode ser um estado de espírito. É transitória até que um fato se confirme. Desconfia-se de algo, de alguém, de algo relacionado com alguém, de alguém relacionado com algo. Uma das características da desconfiança é de às vezes ser ilusória, excesso de alerta, excesso de desconforto. As motivações anteriores que as cultivam são reais, mas o ajuizamento acerca dela, não. E se a desconfiança passeia pelo volátil, momentâneo, sua confirmação quase sempre tem efeito de bomba: curta e certa. A desconfiança em formação revela instinto de sobrevivência.

Falta de confiança, por sua vez, é um estado de constatação. Falta de confiança em si ou em alguém. Objetiva, é a desilusão de quando não mais se espera algo, ou quando se espera o pior. Falta de confiança é uma construção que teve motivos para chegar onde chegou. Trata-se da soma de desconfianças confirmadas.

Porém, entre a desconfiança e a falta de confiança figura algo semelhante a uma esperança. É uma ponta de credulidade, necessária a qualquer cético, e por isso ambígua. 

Hoje pela manhã o meu relógio de parede deixou de funcionar vinte minutos antes das nove horas. Por duas vezes olhei para ele e acreditei na repetida informação. Bastaria que eu tivesse enxergado o ponteiro de segundos parado. O seriado na TV terminou às nove horas e só então enxerguei a verdade. Nada ao redor tinha ficado muito diferente. O sol lá fora continuava forte. E eu aqui dentro pensei em como precisarei estar mais atento a sinais. Ou à falta deles. 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

DOIS TEMPOS



fonte da foto: http://www.superpagina.com.br/estrada_infinita/

A diferença entre o Ivan e o Airton é que o primeiro esteve em minha vida há anos.

Quando se é novo, a experiência da separação é diferente. Não que doa menos, que não ocorra uma perplexidade até maior, mas um vento contínuo vai dissipando o sentimento. Afinal, consta uma lista de acontecimentos prometidos pela vida. Muitas luas virão. E basta ser jovem para acreditar.

Não tenho lembrança de quando vi o Airton pela última vez. No entanto, eu sei que tinha sido há menos de dois meses em sua casa. Apenas nós dois. Como acredito que tenha sido nos últimos tempos. E não há uma terceira pessoa que me ajudasse a recuperar os detalhes. O que eu não lembrasse, sobre o que dissemos ou rimos, sobre as suas queixas ou gozações, o próprio Airton lembraria. Por que essa perda de minúcias se é tudo tão recente?

Anos atrás, com o Ivan, ele naquela cama sem ter noção de nada, alguns detalhes são nítidos. Não mais tocaríamos piano juntos, nem trocaríamos experiências. Fala mansa, era ele a sedução ou o carinho em pessoa. E entre nós, conosco, naquele conservatório de tantas tardes, a presença de Laudivone e seus dedos que também tocavam. Ela, como uma marca indelével, esteve entre nós. E eu, durante muitos outros anos, ainda estive com eles.

Hoje, sem o Airton, é como se um pedaço do meu tempo tenha sido roubado. Porque talvez não haja mais substitutos. Nenhuma risada igual, ninguém de peso e presença que nem ele próprio atribuiria a si. O gostar é simples: iguala-se a uma pontuação bem colocada. Mas a perda e a renitência não se explicam. E daí eu fico querendo aquele vento contínuo do passado, o vento que de certa maneira levou e envelheceu o Ivan. 

A lembrança do Ivan envelheceu. O Airton, da noite para o dia, desapareceu. Natural que eu procure na estante de partituras e sons aquela presença terna, de palavras e compreensão, tudo o que eu fui jovem e ingênuo com Ivan. Natural que eu me ressinta da ausência do carinho físico mais prosaico com o Airton. Ivan tornava as pessoas especiais; Airton, as deixava naturais. Ivan fazia amizades; Airton, as compartilhava.

O vento contínuo do passado, que envelheça a lembrança do Airton, é o mesmo que rejuvenescerá, ora ou outra, a imagem do Ivan. O mesmo que, dia sim, dia não, sempre os trará de volta.

sábado, 16 de janeiro de 2016

2015/2016



http://www.educastro.net.br/2016/01/o-novo-amigo-2016.html




O ano mal começou e eu ainda meio em 2015, meio em 2016, com os acontecimentos bons e ruins. Viagem, meu irmão transplantado, morte de amigo. Necessário fazer uma lista para lembrar em especial das coisas boas, que em geral se esquece com rapidez, e saber que as más tem o seu motivo, mesmo que seja o de nos acompanhar pela vida. Nestes momentos fico com inveja da minha amiga e blogueira Débora quando ela posta suas crônicas femininas escritas num fluxo de pensamento. Pensamento aquático, que não se sabe onde vai dar. Eu, ao contrário, fico buscando uma relação lógica entre as coisas, quando o lógico é apenas sentir e viver. 

O milagre de estar vivo. Janeiro em São Paulo parece um mês de suspensão. Sem aulas, melhor trânsito. No trabalho, no entanto, clientes e reclamações que não param de chegar. Mas olhe, recebemos dois funcionários, desafogou bastante. O verão chuvoso, alternando sol e tempo nublado, temperatura que sobe e desce, uma benção muito diferente dos últimos dois anos secos e insuportavelmente quentes, sem nenhuma esperança. Chuva, graças a Deus, embora trágica para alguns lugares e cidades. Contrastes o tempo inteiro, a vida dá e tira.

E como se não bastasse, outra amiga partirá daqui rumo a sua terra natal, somente ela e a filha. Partida. Isso me remete de novo à morte de meu amigo e a 2015. Nada é igual, ou menos, ou mais, apenas aquela partida que "nunca mais" e como às vezes se sente falta, se quer de volta o passado.