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terça-feira, 25 de outubro de 2016

INFERNO ASTRAL

fonte da imagem: http://estilo.uol.com.br/horoscopo/noticias/redacao/2014/07/17/com-ma-fama-inferno-astral-e-na-verdade-uma-das-fases-mais-ricas-do-ano.htm

Essa história de inferno astral é para quem acredita. E mais ainda para quem não acredita. Comigo acontece todo outubro. Quando menos penso, lá vem ele ardendo. Não adianta querer fugir. Fingir, então, não faz efeito. Inferno astral é pessoal e intransferível. Fosse um tropeção, ou merda de pássaro na cabeça, ou briga com o chefe, faria melhor sentido. Mas inferno astral é subjetividade. Todos os demônios de mãos dadas.

-Demônios são esses clientes que você atende-diz uma amiga-Deus me livre!
Tento explicar-lhe uma questão de categoria, que “o inferno são os outros”, porém, o inferno astral é a gente mesmo.

-Mas será que esses clientes não contribuem pra ferrar mais?-ela insiste.

A força do inferno astral se traduz no pensamento. Hora de rever valores, medos, deslizes. Hora de se sentir assim mesmo: um bosta. E não dá para ser mais ou menos bosta. A gente o é por inteiro. Essa chegada sorrateira e disfarçada do inferno astral tem função educativa. Novo ano natalício, velhas questões, velhas feridas. Às vezes incomoda tanto que o mundo próprio parece sem conserto.

Depois, de forma imperceptível, o inferno vai sumindo, sumindo, parece dobrar a esquina sem aviso. Minha amiga pondera:

-O problema é que da mesma esquina sempre surge um cliente, um inferno de um cliente, um desgraçado.

domingo, 16 de outubro de 2016

VELÓRIO DA DONA NEYDE



Entro pela portaria errada. Quando vejo, já estou caminhando na imensidão do Cemitério da Vila Alpina. Tudo deserto. Pergunto a um senhor qual a direção correta para o velório. Ele sai do seu veículo para explicar. Oferece-me uma carona. Chama-se José e vem visitar a mulher, falecida há um ano. Mais de quarenta anos de união. Diz que o remédio é aceitar nossa ligeira passagem por este mundo. Por distração, acaba me levando para o lado por onde entrei. Pede desculpas, faz retorno na avenida e me desembarca em frente ao velório.

São doze salas, todas ocupadas no começo da tarde, muita gente dentro e fora. Parece um lugar ponto de encontro. Avisto minha amiga Beth na sala X, ela sorri para mim, agradece a minha presença e nos abraçamos. A diferença entre velórios que podemos frequentar são muitas. Quando não se conhece a falecida, nossa dose de carinho é toda da pessoa vítima da perda. Dona Neyde era mãe de Beth. No ambiente de pouca gente, uma atmosfera serena parece compor o temperamento familiar. E assim permanece até a oração e saída do féretro para outro cemitério.

Toda perda, direta ou indireta, parece compor um marco na nossa existência. Eu atravessei a cidade para estar com minha amiga, para explorar um bairro desconhecido. E, aproveitando o dia de sol, caminhei como nos velhos tempos. Porém, dentro do cemitério, sem saber aonde aquelas campas iriam parar, observando as casas vizinhas mais mortas, senti-me um fantasma. Dirigir-me ao senhor José foi quebrar um silêncio. Meu, dele, de duas circunstâncias. Um ano é pouco tempo e os calados também precisam falar.

Agora volto de carona até o Tatuapé com Elaine e Mirtes, irmãs do meu amigo Airton, falecido há quase um ano. Um ano é pouco.

sábado, 1 de outubro de 2016

COMIDA CALA A BOCA

fonte da foto: http://www.mundoboaforma.com.br/confira-o-que-corresponde-a-2-mil-calorias-em-restaurantes-fast-food/

A composição "política" de um fast food combo visa a dominação. Pense comigo: se o sanduíche não é suficiente, a batata frita e o refrigerante completam a função de empanturrar. E em vez de alimentado, você fica é cheio. Satisfeito, terá sido manipulado; manipulado, terá servido aos interesses de terceiros. Assim começa a dominação.

Eu, que tenho vivido longe de comida rápida, ontem resolvo variar. Fico longos minutos decidindo. Quando chego no caixa, o rapazinho pergunta: mais um real disso? Daquilo? Mais 2 reais para ser batata da grande? Não, não e não. Que diabos? A intenção é fazer eu gastar além do "combonado"? O bom da história: ele já entrega um copo para que me sirva livremente de qualquer refrigerante da máquina no canto do balcão de espera. Confiança no cliente. Também pergunta meu nome. Feito o prato, serei chamado pelo meu batismo, nada de números. Aproximação com o cliente.

A variedade de refrigerantes da máquina tem a mesma qualidade: aguados. E olhe que eu não pus gelo. Quando o prato chega, outro rapazinho pronuncia meu nome, faz a entrega e agradece sem me olhar na cara. Então abandono aquele burburinho atrás de uma mesa vazia. Hora da verdade: a batata é boa, não ótima; o sanduíche, saboroso, recheio quente, bem preparado, embora ao vivo pareça menor do que o da foto. Resultado: levanto satisfeito daquela mesa do Center Norte, mas objetivamente infeliz. 

Infeliz pelo contexto. Por ser recebido por jovens quase robozinhos, treinados num roteiro eficiente e sem calor. Atendimento com armadilhas mercantilistas para nos fazer sentir melhor, se possível gastando mais do que o pretendido. O consolo é saber que em breve toda essa moçada estará longe desse trabalho de fábrica. Dos dois avarentos saquinhos de guardanapo vindos no lanche, cada qual com dois guardanapos dentro, eu uso somente um. O outro, de forma paradoxal, guardo na mochila. Como se compensasse para mim mesmo os custos da tal rede de alimentos. Sanduíche, batata frita, refrigerante à vontade. Santíssima trindade. Achei tudo muito caro.