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domingo, 22 de outubro de 2017

PONDERAÇÃO CEARENSE

fonte da foto: http://www.ceara.tv/2015/01/praia-de-titanzinho-em-fortaleza-e.html


Houve uma preparação até que aquela desconhecida me olhasse nos olhos para dizer que eu era bonito. Mas ainda hoje não sei se foi uma preparação intencional.

Eu estava no balcão da lanchonete, curtindo meu pedaço de pizza, quando ela chegou com seu jeito derrotista. Queria um café com leite bem branquinho. E de cara já duvidava que seu pedido fosse atendido do modo desejado. Sim, era do tipo que pensava alto, daquelas pessoas meio sem filtro. Justificava a sua “sorte”, digamos, com a sua origem:

-O problema é que o cearense se expressa mal- disse.

Em plena sexta-feira, final de expediente e de semana, eu não tenho ânimo para discutir, nem discordar, com ninguém. Deixei o barco rolar. O outro motivo para que o seu pedido não fosse realizado, seria o gênero:

-Mulher, eles não respeitam.

Nesse momento parei para pensar em qual seara ambos estaríamos envolvidos. E de quais homens ela falava. Ou, ainda, se o “eles” se referia a qualquer um, homem ou mulher atrás do balcão, atendendo a uma migrante. Ela de novo:

-O cearense se expressa mal. Por isso tem tanto comediante cearense.

Ué, mas não é no humor que a clareza se faz primordial?

Quando o café chegou, exatamente do jeito que pediu, ela deu a mão à palmatória. Estava feliz. Como quando um estrangeiro se faz entender. Contou detalhes de sua vida. Perguntou-me de que era feito o meu suco. Afirmou-se esperta por cursar uma faculdade barata de Direito na zona sul e frequentar a biblioteca da Mackenzie. Algo sobre o machismo, como certas nuvens que pairam, justificava seu caminho para o Direito. E àquela altura da conversa eu não saberia dizer se as suas histórias de aluna eram verdade ou desejo.

Comigo, ainda, ela se sentiu à vontade para falar dos desconhecidos ao redor. Como se fosse profunda conhecedora da alma humana. E quem sabe não fosse mesmo?

E que, ao despedir-se dando um “tchau” curto, feito uma paulistana qualquer, não estivesse levando de mim muito mais do que minha passividade silenciosa de sexta-feira pudesse supor?

sábado, 14 de outubro de 2017

O AFETO E SUAS EXTENSÕES

https://www.mirantte.com.br/artigos.asp?cod_artigo=1585


Eu sou um defensor de que a rotina salva. Falo da rotina compulsória. Aquela que não tem como não ser cumprida. Quantas vezes, depois de enterrar parentes ou amigos, eu tive que voltar a atender clientes no trabalho? Lidar com necessidades e caprichos alheios nesses momentos é tão surreal que anestesia. Nada bom. Mas paradoxalmente salvador. Talvez porque a dor da perda seja tão grande, e o desejo de reflexão tão maior, que não valha a pena lutar contra um mundinho de urgências corriqueiras. Vale sim, uma vez ao ano, mandar os exigentes para junto dos mortos.

Outro tipo de rotina é a escolhida. O mercado eleito. O caminho preferido para chegar até ele. Escolha de utilidade, de comodidade, de afeto. Pode também ser a rotina mais difícil de abrir mão, dado o conforto do previsível. Eu mesmo resisti a trocar de supermercado. Achava que não encontraria pessoas tão educadas em outro. E a distância até ele, então? Ideal para caminhadas. Uma extensão mais de retas do que de curvas, que me dava ânimo, crença em mim mesmo, liberdade, alegria. A adaptação ao novo, no entanto, foi instantânea: preços menores, melhor qualidade. Funcionários simpáticos e amáveis estão em todo lugar, assim como os demônios. Mas confesso: sinto saudades do antigo.

A rotina escolhida oferece opções de mudança, assim como a rotina obrigatória permite adaptações. É como se o olhar, antes voltado para a estrada, se desviasse para as curvas, esquinas, extensões, enfim, em que um novo afeto se possa acomodar. Como esquecer aquele ponto de referência, aquele colo no qual se deitava todas as noites, um amor estanque, imaginário, platônico. Mas acho que agora já estou falando de outra coisa.

domingo, 8 de outubro de 2017

VOLTA, JOVINO II


fonte da foto: http://www.panoramio.com/photo/86897967


Hoje eu sei que o Jovino é um ex-prefeito da cidade de Guarulhos. É para lá que tenho ido todo ano refazer o curso de Brigada de Incêndio. Ano passado chamou minha atenção o fato da frase “Volta, Jovino” aparecer pichada em vários muros. Escrevi uma crônica a respeito. Pensei que se tratasse de um amor ou obsessão pessoal. E vejo que não errei muito, afinal, a preferência política tem também sua parcialidade.

Ontem, plena sexta-feira, mais um retorno ao sítio. E embora a resistência inicial seja a mesma dos outros anos, nada se compara com o “sair” da rotina. O único motivo para abandonar a função de brigadista, segundo meu amigo Celso, seria incapacidade física. Verdade plena. Saúde é o que me faz andar pela cidade, olhar o mundo e tentar retratá-lo.

Dentre uns senhores simpáticos de Barueri no curso, um deles há quarenta anos funcionário e brigadista. Pergunta-me o ano de nascimento, faz contas e diz que eu tinha doze anos quando ele ingressou na empresa. O instrutor deste ano ressalta que o curso nos dá conhecimento que a maioria das pessoas não tem. Outra verdade plena.

O vídeo sobre o famoso incêndio no edifício Joelma é sempre difícil de assistir. Inacreditável como o horror daquelas chamas poderia ter sido evitado com prevenção e informação. À sombra de tantos representantes do poder público, mais inacreditável ainda o exemplo recente da Boate Kiss. Parece que nunca aprendemos. É descaso com o presente, ignorância com o passado.

Dessa forma, penso que a reciclagem anual é o mínimo. Agradecido, como diriam nas redes sociais, por fazer parte de uma minoria com poder multiplicador.

No micro-ônibus, de volta à Ponte Pequena, venho observando a variação da paisagem. Sítio, estradinha, ruas de terra aqui e ali, praças mal cuidadas num círculo de ocupações e puxadinhos. E logo na sequência o bairro melhorado, residências em destaque, árvores nas calçadas. Até uma horta extensa, num terreno aberto para a rua, demonstrando que o comunitário e a humanidade ainda têm jeito. Guarulhos, então, e seus contrastes, sua beleza, seu mundo oculto além dos muros. As frases de apelo ao Jovino, assim como no ano passado, ficam todas para trás. E eu, já na Ponte Pequena, em vez de ganhar a Avenida Tiradentes, sigo opostamente pela Santos Dumont.