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quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

DOIS TEMPOS



fonte da foto: http://www.superpagina.com.br/estrada_infinita/

A diferença entre o Ivan e o Airton é que o primeiro esteve em minha vida há anos.

Quando se é novo, a experiência da separação é diferente. Não que doa menos, que não ocorra uma perplexidade até maior, mas um vento contínuo vai dissipando o sentimento. Afinal, consta uma lista de acontecimentos prometidos pela vida. Muitas luas virão. E basta ser jovem para acreditar.

Não tenho lembrança de quando vi o Airton pela última vez. No entanto, eu sei que tinha sido há menos de dois meses em sua casa. Apenas nós dois. Como acredito que tenha sido nos últimos tempos. E não há uma terceira pessoa que me ajudasse a recuperar os detalhes. O que eu não lembrasse, sobre o que dissemos ou rimos, sobre as suas queixas ou gozações, o próprio Airton lembraria. Por que essa perda de minúcias se é tudo tão recente?

Anos atrás, com o Ivan, ele naquela cama sem ter noção de nada, alguns detalhes são nítidos. Não mais tocaríamos piano juntos, nem trocaríamos experiências. Fala mansa, era ele a sedução ou o carinho em pessoa. E entre nós, conosco, naquele conservatório de tantas tardes, a presença de Laudivone e seus dedos que também tocavam. Ela, como uma marca indelével, esteve entre nós. E eu, durante muitos outros anos, ainda estive com eles.

Hoje, sem o Airton, é como se um pedaço do meu tempo tenha sido roubado. Porque talvez não haja mais substitutos. Nenhuma risada igual, ninguém de peso e presença que nem ele próprio atribuiria a si. O gostar é simples: iguala-se a uma pontuação bem colocada. Mas a perda e a renitência não se explicam. E daí eu fico querendo aquele vento contínuo do passado, o vento que de certa maneira levou e envelheceu o Ivan. 

A lembrança do Ivan envelheceu. O Airton, da noite para o dia, desapareceu. Natural que eu procure na estante de partituras e sons aquela presença terna, de palavras e compreensão, tudo o que eu fui jovem e ingênuo com Ivan. Natural que eu me ressinta da ausência do carinho físico mais prosaico com o Airton. Ivan tornava as pessoas especiais; Airton, as deixava naturais. Ivan fazia amizades; Airton, as compartilhava.

O vento contínuo do passado, que envelheça a lembrança do Airton, é o mesmo que rejuvenescerá, ora ou outra, a imagem do Ivan. O mesmo que, dia sim, dia não, sempre os trará de volta.