Ela
esperava a visita do marido naquele natal.
Sentada
no sofá, olhos fixos na porta, não sabia ao certo quando é que a chave,
introduzida pelo lado de fora da casa, iria fazer a fechadura girar. Por
instantes, tomada por um cansaço, chegou a cochilar. Mas ali, na situação em
que se encontrava, era como se ouvisse uma sirene tocar de forma intermitente.
Para cada cochilada vinha um acordar súbito, um novo estado de vigilância. A
luz da lua entrava pela janela aberta, e um silêncio cada vez maior tomava conta
da casa.
Passaram-se
alguns minutos, talvez uma hora e meia, quando afinal o contato seco de chave
na fechadura antecedeu os dois giros na lingueta. A porta foi escancarada e,
antes de a luz ser acesa, surgiu a silhueta do marido no lado de fora. Tateando
a parede, ele empurrou a mala com os pés, ao mesmo tempo em que, de forma
investigativa, olhava para dentro do cômodo. Ao acender a luz, de cara avistou
a mulher. Invadido por uma sensação ruim, fez uma expressão de quem acabava de
ver um fantasma.
-Surpreso?-ela
perguntou.
-Mas o
quê...
-Calma,
marido, muita calma! Acho melhor você sentar porque eu não tenho boas notícias.
-Cadê a
Sofia? Vocês brigaram? O que você tá fazendo aqui?
-Uma
coisa de cada vez. Eu não briguei com ninguém, nunca fui de briga. Apenas
descobri quem era a tua amante.
-Desgraçada!
-Desgraçada,
eu? Por acaso fui eu que abandonei você e nosso filho sem dar uma explicação?
Por acaso fui eu que do nada sumi sem deixar pista, apenas com um bilhete
ridículo dizendo que precisava ficar sozinha? Então é aqui na casa dela que
você vinha ficar sozinho?
-Cadê
ela? Cadê a Sofia?
-Cala a
boca e pára de gritar. Eu já te falei pra você sentar. Não adianta, marido,
pode subir e descer as escadas, pode vasculhar a casa inteira que você não vai
achar ninguém aqui além de nós dois.
-Pelo
amor de Deus, o que aconteceu aqui?
-Como
assim: “o que aconteceu aqui”? Por acaso você tá enxergando alguma bagunça na
casa, algum sinal de luta sangrenta, móveis quebrados, livros depenados? Ah,
sim, entendi. Acho que talvez a casa esteja muito arrumada pelo o que era
antes. É isso, marido? Sim, limpeza demais, arrumação demais...
-Cadê
ela, cadê ela?
-Morreu.
-Assassina,
assassi...
-Arf,
não adianta querer me matar, larga do meu pescoço agora, você nem viu ainda o cadáver
dela.
-E onde
ela está? Sofia! Sofia!
-Enterrada.
Não me olhe assim. Claro, marido, enterrada. Ela não morreu agora e nem hoje.
Já faz uma semana. Você duvida? Olhe aqui o atestado de óbito. Pode conferir a
data.
-Eu
falei com ela, eu falei...
-Eu sei
disso. Falou com ela há exatos nove dias. Depois deve ter ficado ocupado na tua
viagem de negócio. E agora faz quatro dias que liga sem parar, deixa recado, ó,
no celular, na secretária eletrônica e nada. Provavelmente nada no msn nem no
face. Estranho, né?
-Você,
você pegou os recados...
-Mais
do que isso, marido. Alguns eu ouvi ao vivo, até me surpreendi com o teu
repertório. Mas jamais iria atender, jamais iria te constranger.
-Eu não
acredito em você. De quê ela morreu?
-Coração.
Não tá vendo aí no atestado? É, infarto mesmo, coisa tão comum hoje em dia, né?
As pessoas vivem muito estressadas.
-Por
quê, por quê?
-Por que
ela morreu do coração? Olhe, não sou eu quem escolhe a morte alheia, não tenho
esse poder.
-Não!
Por que você não me avisou?
-Deixe-me
ver: porque eu não quis? Será por isso? Ou porque eu estava ocupada demais
dando um apoio pra mãe dela, que ficou desorientada, precisando de uma ajuda
nas questões burocráticas da liberação do corpo e do funeral? Ou será porque
ninguém das redondezas ou parente da Sofia precisava saber que o último
‘namorado’ dela era justamente o meu marido-que fugiu sem deixar rastro e que,
por ironia do destino, teria sido informado por mim mesma da morte dela?
-Você
não a conhecia, não teve tempo de ter tanta intimidade.
-Eu
estava no lugar certo na hora certa. Sabe quantas mulheres têm a felicidade de
ver a amante do próprio marido despencar de uma escada e, puf, morrer? Basta
isso pra se transformar numa recente amiga, ninguém sabia, ninguém desconfiaria,
ninguém poderia dizer o contrário. Tanto que estou aqui, cuidando da casa, de
todos os pertences, de todos os presentes que você deu a ela, enquanto resolvem
a questão do inventário. Não é lindo?
-Você é
louca.
-Louca,
eu? Escute aqui, seu desgraçado, você vai ter tempo, muito tempo ainda pra se
redimir comigo. Vai ter tempo de pensar no que fez. Vai ter tempo de se
ajoelhar e pedir perdão pro nosso filho enquanto ele ainda tem idade pra
perdoar. Três aninhos, o coração dele ainda é puro, vai esquecer que você
esteve ausente.
-Quem
disse que eu vou voltar pra você?
-Pra
mim? Você vai é voltar pra casa. Sabe por quê? Porque agora a tua aventura
apaixonante acabou, você não tem mais pra onde ir. Essa é a desvantagem,
marido, de se fazer coisas escondido. Da próxima vez não se esqueça de contar
pra uns dois amigos, teus e dela. Desculpe, dela não mais.
-Quero
ficar sozinho.
-Pode
ficar. Te dou cinco minutos lá no carro. Depois feche a porta e traga a chave,
que a responsável pela casa agora sou eu. Ah, sim, feliz natal pra você.
O
marido, que combinara nessa véspera estar ali com Sofia, olhou ao redor da
sala, da escadaria, chegou a vislumbrar o sorriso da morta. Depois, acometido
por uma vertigem, largou-se no sofá como se afundasse num abismo.