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domingo, 16 de outubro de 2016

VELÓRIO DA DONA NEYDE



Entro pela portaria errada. Quando vejo, já estou caminhando na imensidão do Cemitério da Vila Alpina. Tudo deserto. Pergunto a um senhor qual a direção correta para o velório. Ele sai do seu veículo para explicar. Oferece-me uma carona. Chama-se José e vem visitar a mulher, falecida há um ano. Mais de quarenta anos de união. Diz que o remédio é aceitar nossa ligeira passagem por este mundo. Por distração, acaba me levando para o lado por onde entrei. Pede desculpas, faz retorno na avenida e me desembarca em frente ao velório.

São doze salas, todas ocupadas no começo da tarde, muita gente dentro e fora. Parece um lugar ponto de encontro. Avisto minha amiga Beth na sala X, ela sorri para mim, agradece a minha presença e nos abraçamos. A diferença entre velórios que podemos frequentar são muitas. Quando não se conhece a falecida, nossa dose de carinho é toda da pessoa vítima da perda. Dona Neyde era mãe de Beth. No ambiente de pouca gente, uma atmosfera serena parece compor o temperamento familiar. E assim permanece até a oração e saída do féretro para outro cemitério.

Toda perda, direta ou indireta, parece compor um marco na nossa existência. Eu atravessei a cidade para estar com minha amiga, para explorar um bairro desconhecido. E, aproveitando o dia de sol, caminhei como nos velhos tempos. Porém, dentro do cemitério, sem saber aonde aquelas campas iriam parar, observando as casas vizinhas mais mortas, senti-me um fantasma. Dirigir-me ao senhor José foi quebrar um silêncio. Meu, dele, de duas circunstâncias. Um ano é pouco tempo e os calados também precisam falar.

Agora volto de carona até o Tatuapé com Elaine e Mirtes, irmãs do meu amigo Airton, falecido há quase um ano. Um ano é pouco.

4 comentários:

  1. Júlio, com certeza, toda perda, direta ou indireta, compõe um marco em nossa existência.... em mim, afloram os sentimentos de urgência para o contato com aqueles que amamos, que são importantes, que levamos no coração, mesmo que não vejamos com frequência... não sabemos quando será o último contato, e palavras e gestos que desejamos dedicar....

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    1. Sim, Elaine. Não sabermos é a única certeza. Mas que bom podermos, vez ou outra, falar sobre isso. Beijo.

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  2. Um ano é 'nada', Julio. Nos perdemos no contínuo do tempo e quando percebemos passaram-se cinco, dez anos...

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    1. E enquanto pensamos nisso, Mírian, o tempo continua passando. Beijo.

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