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segunda-feira, 26 de setembro de 2016

PARTE UMA DAMA


Minha geladeira não está nada bem. 
Acordei hoje com ela tendo inúmeras paradas respiratórias. Liga e desliga ao mesmo tempo. Não consegue ficar ligada. Tenta de novo. Não tem forças. Ofegante e heroica vai tentando, mas parece vencida pelo cansaço. Eu fico na expectativa da hora em que ela parará de vez. No entanto, durante meu banho e meu café, ela se mantém obstinada. É um apego à vida. Não posso ajudá-la porque não sou médico de geladeira. E então saio abatido de casa para o trabalho.

Aos trinta e seis anos ela nunca teve nada. A única coisa que precisei fazer foi arrancar a sua placa de baixo. Tremia muito, fazia barulho forte mesmo eu calçando seus quatro pés. Não sei bem como se valora os anos de uma geladeira. Dizem quinze para os gatos, treze para os cães. Comento com o meu amigo Celso que Marilyn Monroe morreu aos trinta e seis anos. Ele rebate dizendo que ela era A geladeira. E se duvidar também fogão e airbag, mas esses dois sou eu quem diz. Minha sobrinha completa afirmando: "ela era a cozinha inteira". 

Retorno do trabalho esperando o pior. E mais triste porque será inevitável substituí-la, pois não se vive sem geladeira. Entro em casa pesaroso, abro a sua porta para avistar o gelo desmilinguido. Nada disso. Estão nas formas e conservados no frio. E então ouço a respiração dela: talvez mais fraca, menos compassada, mas viva. Minha geladeira resistente e gelada por dentro. 

Daqui para frente é viver um dia de cada vez.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

VOLTA, JOVINO

fonte da imagem: http://www.panoramio.com/photo/86897967

A convocação anual para o curso de Brigada de Incêndio de cara me provoca antipatia.

Já no dia marcado, acordo mais cedo e sigo outro roteiro de transporte público. A caminho não tenho tempo de remoer mágoas. Brigada não foi minha escolha. E como não trabalho em local ou atividade de risco, o ano corre sem que eu me lembre ser brigadista. Cumprida a primeira etapa do trajeto, chego na Ponte Pequena, onde um micro-ônibus, à espera dos funcionários, nos fará ida e volta ao sítio.

Embarco, solto um "bom dia" a todos, alguns dos vinte e poucos passageiros respondem, vejo uma mãozinha estendida acima do encosto de um banco a me cumprimentar. Trata-se da Claudinha, funcionária do RH Norte da empresa, acompanhada e sorridente. Durante uma hora de percurso terei tempo de dormir ou de pensar em nada, esperando que o dia seja curto.

O roteiro é cumprido: chegada ao sítio, café, aula teórica, pausa de 10 minutos, aula teórica, almoço. À tarde, com roupas, botas e capacetes adequados, aula prática: manuseio de mangueira e extintores na simulação de incêndio, visita à casa da fumaça. E perto das quatro horas da tarde, com os certificados em mãos, já estamos no micro-ônibus de volta. 

É nessa hora que uma sensação de bem-estar toma conta de mim. A mesma que ocorreu no ano passado, quando fiquei mais atento a sinais. Não sei como explicá-la. Ela aparece como se toda a dificuldade imaginada tivesse uma prova em contrário: encontrar pessoas cuja maioria não conheço, quebrar o gelo no contato com o grupo, ouvir os mesmos ensinamentos do ano anterior. Mas sempre tem uma novidade, surge outra dúvida, a forma do professor de agora se expressar, o jeito dele conduzir a parte prática. Além disso, o contato quase imperceptível com a atmosfera do sítio: árvores, pássaros e formigas espalhados, algumas ladeiras e espaços verdes abertos. Um silêncio. Depois, no movimento da parte prática do curso, subindo e descendo escadas no escuro, apontando, em grupo, a mangueira para o fogo, um atestado de que o corpo é capaz de muita coisa. Já refestelado na poltrona do micro, o momento maior de descontração quando um colega do grupo, sentado atrás de mim, diz que até ele está interessado num tal de Jovino. Porque a frase "Volta, Jovino", ao longo de um muro extenso, aparece pichada várias vezes. E mesmo depois de outras curvas, outros muros, a frase continua aparecendo. Se foi amor ou obsessão, não sei.

Sei que ao chegarmos na Ponte Pequena, algumas pessoas se despedem, de mim e entre si, espalham-se para seus destinos. E eu, livre, ganho a imensidão da avenida Tiradentes.

domingo, 18 de setembro de 2016

DOMINGOS MONTAGNER E DAQUILO QUE NOS OCUPAMOS

fonte da imagem: http://mdemulher.abril.com.br/famosos-e-tv/claudia/famosos-lamentam-a-morte-de-domingos-montagner

A morte ronda a vida. E nos surpreende quando sai da sua invisibilidade. Embora vida e morte pareçam as maiores forças antagônicas, ambas trabalham em conjunto. Ali estarão, o tempo inteiro, interligadas e cúmplices. 

Ontem, manhã de sábado, ocupei-me pela TV do velório do ator Domingos Montagner. Eu precisava sair para fazer compra, mas enredei-me no ritual: absorver e processar a notícia, certificar-me do desfecho. É um processo parecido com o que enfrento na morte de parentes e pessoas próximas. Mesmo não sendo telespectador de novelas, cheguei a acompanhar o trabalho do ator em "Sete Vidas". Na época fui cooptado pelo texto, também pelas interpretações e direção de elenco. A trama, de âmbito familiar, presenteou-me com personagens como velhos conhecidos. E foi essa morte tão abrupta, de alguém cuja simplicidade ia sendo exaltada nos depoimentos, que causou em mim a necessidade de uma reflexão.

Em geral a morte traz à tona o legado da pessoa: quem foi, o que fez, o que deixou. Se o conjunto da obra é bom, belas histórias ecoarão da boca de terceiros. Medonhamente, porém, existem pessoas que se ocupam em criar histórias a respeito de si mesmo. Falo dos mentirosos, e corruptos, e políticos. Aqui no Brasil não faltam. Vangloriam-se com os próprios feitos, exibem-se sem culpa, desqualificam os trabalhos honestos. Fincam o pé na mentira, a despeito de evidências, para transformá-la em verdade pela repetição.

Sobre o falecido Domingos Montagner, cujas qualidades ninguém recebeu propina para propagá-las, cuja comoção da morte expressou-se com discrição, tudo soa verdadeiro. Como a dor da perda de um conhecido, um próximo na tela da sala de estar, sem arroubos, sem espalhafato. Que bom sempre pudéssemos avaliar pessoas, assim como a ele, somente olhando nos olhos. 

A morte ressalta a importância da continuidade da vida. Ontem pela manhã ocupei-me de um velório. Depois saí de casa para comprar apenas o necessário.

terça-feira, 6 de setembro de 2016

HISTÓRIA DE ESTAGIÁRIOS E APRENDIZES

fonte da foto: http://bibocaambiental.blogspot.com.br/2015/06/libelulas-belas-mas-assassinas-brutais.html

Eu não imaginei um dia sentir saudade da Melissa. Ou daquele nosso ocasional encontro na Vinte e Quatro de Maio, fundos da Galeria do Rock, quando há pouco ela havia saído da empresa. Talvez porque ainda não se formara a barreira de tempo entre nós. Melissa exalava doçura. Pele alva, cabelos escuros, olhos grandes e meigos. Se existe alguém que transmita expressão de bondade, esse alguém era ela. Após ouvir com atenção uma última frase de conversa, ela mantinha o sorriso e olhar fixo na gente. Jovem, suave, fala mansa e assertiva, pessoa nascida para nunca ofender. Seus últimos dias no trabalho, contudo, foram de faltas seguidas. Melissa desconsiderou o emprego e o curso no Senai, ambos atrelados. Mais tarde afirmou que não se interessava pelo diploma. Estava decidida a seguir outro caminho.

Na época beirou-me certa infelicidade. Largar algo próximo do final não me parecia boa ideia. Pelo tempo que ela investira no projeto, pelo título, mesmo sendo apenas papel, por uma trajetória que não ficaria oficialmente registrada. Outra vez o olhar de adulto interferindo num espírito livre. Pois a meu ver toda a história carregava um componente de desilusão. Desilusão adquirida no próprio ambiente de trabalho, insalubre demais para os puros. Por isso jamais me coloquei a ela com palavras.

As histórias de estagiários e aprendizes dentro da empresa são muitas. Em geral entram crus, aprendem com facilidade as tarefas, revelam aptidões, partem às vezes sendo lembrados pelas traquinagens malandras. De muitos, lamentamos o talento compulsoriamente desfeito pelo fim do contrato. De outros, a constatação de que um dia, como pássaros, estiveram próximos da gente.

Melissa, em meio à multidão daquele começo de noite, parecia feliz em me ver. Contou-me sobre as novidades, talvez um emprego à vista, talvez outra coisa, qualquer possibilidade para a pessoa agora sem vínculos. E embora sem pressa ela mantivesse o sorriso de sempre, chegou a hora da inevitável despedida. Melissa, feito uma libélula, partiu por entre os transeuntes da Vinte e Quatro de Maio, deixando em mim a eterna sensação de que fui eu que a abandonei.