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terça-feira, 10 de maio de 2016

DOROTHY PARKER NO TEATRO PEQUENO ATO




Na medida em que o tempo passava, corríamos o risco, Eduardo e eu, de ser os únicos na plateia. O horário da sessão de quinta-feira já se aproximava e, com exceção das pessoas do teatro que circulavam no saguão, apenas um som ambiente permeava a espera. Na rua estreita e sem carros, o paredão de prédios fazia um isolamento acústico e de mundos. Nem parecia que estávamos tão perto da movimentada rua da Consolação.  

Confesso ficar triste com teatro vazio. Principalmente por estar em São Paulo, cidade com tanta opção cultural e tão enorme população. Fico pensando no trabalho que é idealizar um espetáculo -pesquisas, ensaios, produção, apoios, patrocínios etc.- para eventualmente amargar noites quase sem público. E, ai, meu Deus, se o espetáculo não fosse bom, não conseguiríamos fingir o contrário.

Afinal, descemos as escadas. Quase como num culto religioso, o clima que antecede o "ao vivo" é sempre único. Há expectativa para o insólito, creio que tanto da parte do espectador quanto da parte de quem atua. E lá estamos, de chofre, nos primórdios do século passado, vivendo historietas de flertes, não, de namoros, não, de amores e casamentos, sabe-se lá, uma mistura relacionada a afetos e à solidão social. Eis o universo de Dorothy Parker: transitar pelo humor, a princípio abobalhado, quase infantil, mas também sagaz e crítico, para revelar o individual das carências e fragilidades. Em especial no mundo feminino.

O grupo de oito atores, cinco mulheres e três homens, que se movem em cena é uma delícia. Com a graça de uma dança ragtime, inclusive com números de sapateado, a adaptação nos instala com conforto na época. Como se estivéssemos assistindo às tramas pela janela de casa. O belo figurino, em conjunto com a iluminação, são ingredientes que por si dispensam um mobiliário de época. Porque importa a maneira como as histórias, entrelaçadas entre riqueza, proletariado e boemia, são contadas. Depois de muito rir com os atores, o desfecho nos vai encaminhando para um estado de abandono. O jogo de cena, muito bem aproveitado pela quantidade de mulheres a interpretarem a mesma personagem, mostra a ambivalência da condição humana, suas semelhanças e dessemelhanças. No entanto, a figura dos homens, às vezes tão ou mais frágil, reforça o quadro de valores e padrões de um período histórico e econômico difícil. A vida em guetos, a clandestinidade, outros subterrâneos como esta sala que, ao final da apresentação, tem a luz acesa para aplaudirmos com alegria o elenco.    

Um privilégio terem decidido pelo "sim" em apresentar a peça na quinta-feira deserta. Vibramos como se levássemos a energia de uma plateia lotada. E de sobra ainda trocamos cumprimentos e boas palavras com direção e parte do elenco. Sorte a minha ter um amigo de longa data que se encarrega do teatro. Noite inesquecível no Pequeno Ato.   

domingo, 8 de maio de 2016

COLETÂNEA DE MÃES II

fonte da imagem: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=40781

Eu escrevo, se me perguntassem, primeiramente para as mulheres. Não pela intuição ou desconfiança. Nem pela capacidade de instigar chuva. Eu escrevo para as mulheres pelo acolhimento. A natureza as fez assim. Acolher o filho, o pai, o irmão, o amante. Acolher também a própria mãe, as amigas, as filhas das amigas. Nas mulheres o acolhimento pontua, provoca, incentiva. Nas mulheres o acolhimento não julga; agasalha, compreende, aconselha. Acolhimento nas mulheres é colo, é ventre, é grão; e é maciez, berço e beijo. O homem, no acolher da mulher, volta a ser homem, filho, bebê. Mulheres acolhedoras acolhem hábitos, vícios, pensamentos.


Mulheres acolhedoras, nem todas. E há homens acolhedores da maior suavidade. Mas é diferente.

texto de 2003, revisado em 07/05/2016

COLETÂNEA DE MÃES

fonte da imagem: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/fichaTecnicaAula.html?aula=40781

Eu precisei de uma mãe que me amamentasse, que me oferecesse boa educação e me visse crescer. Precisei de uma mãe que me desse cascudo, que me dissesse “não” e me ensinasse a escrever. Eu precisei de uma mãe que me aturasse o temperamento, que me entendesse nos medos, que fosse a primeira a ouvir sobre meu primeiro emprego. Precisei de uma mãe que me esperasse em casa, que não me esperasse nem em casa, que eu tivesse que esperar. Eu precisei de uma mãe que me achasse inteligente, bonito, educado. Precisei de uma mãe que me apontasse os erros, a pressa, o equívoco. Eu precisei de uma mãe que também não me facilitasse a vida, que não chorasse por mim, que me ignorasse. Precisei de uma mãe que me enxergasse como os outros me enxergam, que me soltasse no mundo, mas que, num aspecto sutil e secreto de mãe, dependesse de mim. Eu precisei de uma mãe que gostasse do que escrevo, que soubesse por que escrevo, que fosse a primeira a ler entrelinhas.

Por minha mãe, e por todas as outras que já tive, é que escrevo. Porque um homem é somente só sem aquelas que, sendo únicas, sempre são tudo, e nos acolhem no ventre macio, a troco de tudo, a troco de nada. 

texto de 2003 revisado em 07/05/2016

domingo, 1 de maio de 2016

DESCONFIANÇA, FALTA DE CONFIANÇA

fonte da imagem: http://www.rosangelaterapeuta.com.br/2012/07/luz-e-sombra/

Desconfiança pode ser um estado de espírito. É transitória até que um fato se confirme. Desconfia-se de algo, de alguém, de algo relacionado com alguém, de alguém relacionado com algo. Uma das características da desconfiança é de às vezes ser ilusória, excesso de alerta, excesso de desconforto. As motivações anteriores que as cultivam são reais, mas o ajuizamento acerca dela, não. E se a desconfiança passeia pelo volátil, momentâneo, sua confirmação quase sempre tem efeito de bomba: curta e certa. A desconfiança em formação revela instinto de sobrevivência.

Falta de confiança, por sua vez, é um estado de constatação. Falta de confiança em si ou em alguém. Objetiva, é a desilusão de quando não mais se espera algo, ou quando se espera o pior. Falta de confiança é uma construção que teve motivos para chegar onde chegou. Trata-se da soma de desconfianças confirmadas.

Porém, entre a desconfiança e a falta de confiança figura algo semelhante a uma esperança. É uma ponta de credulidade, necessária a qualquer cético, e por isso ambígua. 

Hoje pela manhã o meu relógio de parede deixou de funcionar vinte minutos antes das nove horas. Por duas vezes olhei para ele e acreditei na repetida informação. Bastaria que eu tivesse enxergado o ponteiro de segundos parado. O seriado na TV terminou às nove horas e só então enxerguei a verdade. Nada ao redor tinha ficado muito diferente. O sol lá fora continuava forte. E eu aqui dentro pensei em como precisarei estar mais atento a sinais. Ou à falta deles.